Padroeira das Santas Casas da Misericórdia
Painel rectangular, de grandes dimensões, representando Nossa Senhora da Misericórdia, de acordo com o cânone iconográfico da Mater Misericordiae. A Virgem orante, em posição frontal, preside no centro composição, dominando igualmente pela sua dimensão e jogos de relevos, que o artista destacou do plano. Nomeadamente no tratamento dos fartos e espessos panejamentos das vestes, visíveis nos sulcos dos pregueados, estando a cintura cingida por faixa formando laço. O penteado é farto e longo, apartado ao meio, emoldurando o rosto oblongo da Virgem. O amplo véu protector, sob o qual estão as figuras abrigadas, também ele indiciando no seu lançamento ser de tecido encorpado, é rematado com largos galões ornamentados, estando dois anjos a segurá-lo. No remate superior central, dois pequenos anjos que parecem "esvoaçar", coroam a Virgem. O crescente lunar aos seus pés, sobre anjos, e a coroa remete-nos para o culto da Imaculada Conceição. Este tratamento confere à Virgem majestade aristocrática. De joelhos e em posição de destaque encontram-se várias personagens em atitude de adoração, estando, à direita, conforme as normas iconográficas, um papa com tiara, seguido de diversos membros do clero, sendo um deles bispo e os mais afastados membros de ordens religiosas. Do lado esquerdo, igualmente destacado, de joelhos, vemos um casal régio, ostentando coroas imperiais. No plano seguinte encontra-se um outro casal régio, em pé, ostentando coroas fechadas. Segue-se um grupo de pessoas, figurando uma religiosa. Aos pés da Virgem, ao seu lado direito, está um pobre, inserido numa posição algo desconfortável, já que está inserido num espaço manifestamente exíguo. No entanto, expressa uma forte fisionomia. Tem a cabeça descoberta, segurando contra o peito o chapéu.
O vestuário das diversas personagens é igualmente robusto, sendo de realçar a capa de asperges do sumo pontífice, que apresenta largos sebastos e encabeçamento volumoso, o que confere rigidez à figura. A indumentária do rei que se encontra em primeiro plano é característica do século XVII, contribuindo para que se possa estabelecer a cronologia da obra com toda a segurança. Nuvens enroladas completam a superfície livre desta composição, numa clara preferência pela sobrecarga ornamental.
O tratamento compositivo revela perícia no talhe, apresentando uma certa rigidez no tratamento de algumas personagens-tipo, o que nos parece ter sido uma opção do artista, em contraponto ao excelente tratamento das vestes e cabelos da Virgem, também ela em pose hierática, a par do movimento do véu e dos anjos no remate superior.
Quanto à opção estética, estamos na presença de uma cristalização do modelo plástico de João de Ruão, activo em Portugal entre 1530 a 1580, data da sua morte. Trata-se de uma emulação da corrente estética que marcou um dos períodos mais significativos da arte portuguesa, o da escultura coimbrã . A partir de 1580 a arte entra em decadência devido à crise político-económica do reino. Diminuindo a clientela, cai também o ensino das artes e o número de oficinas activas. Sem seguidores à altura e sem possibilidade de abertura a novas propostas, a arte estagnou, seguindo esquemas conhecidos, não por falta de talento dos artistas, mas de formação teórica, o que explica a prevalência da arte do renascimento e do humanismo por um período tão prolongado de tempo.
Portugal,
cerca de 1636
Pintura: Gonçalo Coelho, 1636
Matéria: madeira de carvalho
Dimensões: 340x290x25cm
Técnica: Retábulo entalhado, com escultura em relevo. Originalmente era estofado e policromado. No século XIX foi restaurado, tendo a policromia original sido removida.